Com a Palavra

Com a Palavra nº30: conservar a cor da época

Com a Palavra está de volta e para começar o ano nada melhor que apresentar a mais recente obra em pré-venda. A Ateliê Editorial publica a terceira edição de Tirant lo Blanc, revisada e em novo formato, agora integrada à Coleção Clássicos Comentados. A obra foi traduzida por Cláudio Giordano, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Tradução, em 1999.

Este romance épico, escrito por um rei valenciano em meados do século XV, é um clássico da literatura universal e influenciou Miguel de Cervantes, que o cita em Dom Quixote de la Mancha. O livro narra as façanhas de um cavaleiro andante que se transforma em grande general. Dono de enorme força física, o protagonista é também um audaz e sentimental cortejador de sua dama.

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Neste número, os assinantes leram com exclusividade o texto de apresentação da obra, em que Cláudio Giordano explica o seu processo de tradução, assim como o primeiro capítulo do romance.

Esta traduçãopor Cláudio Giordano

Longe de nós parodiar nosso mestre da tradução, poeta e ensaísta, mas a pura verdade é que traduzimos o Tirant lo Blanc para lê-lo e saboreá-lo. Tivemos boa formação linguística, desde o grego clássico e o latim, até o francês, italiano e inglês; o catalão, porém, não fez parte desse aprendizado.

Em 1990 o acaso nos aproximou da língua catalã e acabamos traduzindo desse idioma o Livro das Bestas de Raimundo Lúlio. Valemo-nos então da tradução francesa de Patrick Gifreu (Le Livre des Bêtes, Editions Du Chiendent, 1985) e do socorro do amigo Esteve Jaulent. No embalo dessa experiência abalançamo-nos a fazer a tradução do Tirant. Inicialmente escoramo-nos nas traduções espanholas de J. F. Vidal Jové e na anônima quinhentista; depois obtivemos, graças ao interesse dedicado de Hector Olea, as inglesas de Rosenthal e de La Fontaine.

Entretanto o texto que o leitor tem agora em mãos é reprodução portuguesa feita do original catalão, lido (e, espero, suficientemente assimilado) palavra a palavraCom isso não queremos mais do que arrogar-nos fidelidade ao original. De tal sorte que, mesmo as passagens abreviadas ou eliminadas pelos citados tradutores, aqui se encontram expressas segundo nos foi possível fazê-lo.

La Fontaine executou, a meu ver, o melhor trabalho: manteve-se praticamente fiel ao original, procurando vesti-lo à moda atual: “A presente tradução é necessariamente um tanto livre, na medida em que Tirant lo Blanc, mais do que em uma língua estrangeira, é escrito num estilo estrangeiro, livre de noções modernas de precisão sintática e economia de expressão. […] Embora eu tenha tentado minimizar a extravagância eliminando tautologias e palavreado estereotipado sempre que razoavelmente possível, também procurei não alterar excessivamente a qualidade estrangeira do trabalho”.

Para exemplificar sua maneira de agir na tradução, La Fontaine cita pequena passagem que reaproveitamos a fim de mostrar nossa opção. Diz ele: “Em uma situação nada excepcional, Tirant, comovido até as lágrimas pela aparência emaciada de seu primo Diafébus, há muito cativo, fala com ele com estas palavras: No em comporta la sang ni l’amor que en veure la vostra persona los meus ulls puguen retenir aquelles llàgremes que lo meu piadós cor piorar no cessa. Grau alteració i moviment de dolor m’ha portat la vostra presència, per los manifests senyals de tristor, treballs I afanys que en vostra cara se demostren, los quais, puix per mi ab tanta virtut i paciència los haveu sostenguts, humilment vos demane me vullau perdonar”.

“Na minha tradução, a passagem diz o seguinte: ‘Não posso deixar de chorar diante dos sinais de miséria, sofrimento e ansiedade que se revelam em seu rosto, e humildemente imploro que me perdoe pelas dificuldades que você suportou por minha causa com tal virtude e paciência’”.

O leitor encontrará nesta tradução: “O vínculo de sangue e o amor não permitem que, ao ver-vos, meus olhos contenham as lágrimas brotadas de meu coração compadecido. Forte comoção e sentimento doloroso provocou-me vossa presença pelos sinais evidentes de tristeza, desgastes e tribulações estampados em vossa fisionomia, a que virtuosa e pacientemente vos sujeitastes por mim. É com humildade que disso vos peço perdão”.

Procuramos não eliminar nada, sequer as redundâncias, impostações ou mesmo aparentes inocuidades do original: nosso propósito foi conservar-lhe o máximo da linguagem e estilo, sob forma inteligível ao leitor de língua portuguesa; dentro de nossas limitações, empenhamo-nos em tornar claro e em estilo minimamente arcaico o texto catalão marcado senão rebarbativamente medieval e não raro empolado. Mantivemos o uso verbal da segunda pessoa e as expressões de tratamento empregadas por Martorell até a exaustão. Pondo em português o original catalão, buscamos, ainda que palidamente, conservar-lhe a cor de época.

CAPÍTULO 1

Começa a Primeira Parte do livro de Tirant, que trata de alguns feitos virtuosos
realizados pelo Conde Guilherme de Varoic em seus bem-aventurados últimos dias

Tal é a excelência da carreira militar, que deveria ser mui reverenciada, observando-a os cavaleiros de acordo com o fim para o qual foi instituída e ordenada. Entretanto, estabeleceu a divina Providência e assim lhe apraz que os sete planetas exerçam influência no mundo e tenham domínio sobre a natureza humana, inclinando os homens por muitos modos a pecar e viver em vício; todavia, não lhes tolheu o Criador universal o livre-arbítrio que, se bem governado, pode mitigar e vencer aquela influência, desde que se viva virtuosa e ponderadamente. Por isso, com a ajuda divina, o presente livro de cavalaria se dividirá em sete partes principais, para demonstrar a honra e o domínio que os cavaleiros devem exercer sobre o povo.

A primeira parte versará sobre as origens da cavalaria; a segunda sobre a condição e ofício da cavalaria; a terceira sobre o exame que deverá fazer o gentil-homem ou o nobre que deseja receber a ordem de cavalaria; a quarta sobre a forma como deve tornar-se cavaleiro; a quinta sobre o que significam as armas de cavaleiro; a sexta sobre os atos e costumes afetos ao cavaleiro; a sétima e última sobre a honra que se há de prestar ao cavaleiro. Essas sete partes de cavalaria serão discutidas em determinada parte do livro. Agora, neste início, se tratará de alguns atos valorosos de cavalaria que realizou o egrégio e intrépido cavaleiro, pai da cavalaria, o Conde Guilherme de Varoic nos seus bem-aventurados derradeiros dias.

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