Por: Renata de Albuquerque
A Pintura como Modelo para uma Filosofia da Expressão em Merleau-Ponty é uma leitura de Merleau-Ponty, sobre como pintura, filosofia, arte e pensamento podem contagiar-se mutuamente. O livro traz ao leitor uma reflexão sobre como o filósofo francês estabelece a relação entre pintura e filosofia. Um dos pontos de partida é a afirmação do filósofo que a pintura foi para Cézanne seu mundo e sua maneira de existir. O assombro que o pintor tem diante do mundo relaciona-se ao assombro que seria intrínseco ao filósofo para pensar o mundo. “A proposta é identificar como Merleau-Ponty elabora a passagem da percepção à expressão, e porque ele acorda à pintura um modelo possível para filosofia”, explica a autora, Ana Westphal. A seguir, ela fala sobre o lançamento ao Blog da Ateliê:
Há uma complexa relação entre pintura e filosofia, de acordo com Merleau-Ponty. O que se pode dizer a respeito disso para o leitor que não teve contato com esse tema antes?
Ana Westphal: Imaginar a pintura como modelo para filosofia é, por um lado, algo que soa surpreendente àqueles que nunca leram a obra de Maurice Merleau-Ponty, e, por outro, complexo àqueles que pensam nos desdobramentos desta relação proposta à filosofia. Mas, se tal como nos diz Merleau-Ponty, pensar a prática reflexiva conforme a pintura – entendendo-se que as relações por ele estabelecidas no âmbito da pintura-filosofia, são sempre relações metafóricas -, causa-nos, em um primeiro momento, certo estranhamento, pelo próprio suporte ou “elemento constitutivo” que a pintura teria a oferecer ao discurso filosófico, ao olhá-las como ele as olha, somos levados ao encaminhamento da questão. Desse modo, para que o problema se nos apresente recoloco-o: de que modo esse homem-pintor aparece à Merleau-Ponty e o faz anexar os “procedimentos” da pintura à filosofia? À questão, resumidamente posta, vincula-se a essência do aparecer, ao olhar que restitui à presença o outro e o mundo. Assim sendo, ao tomar a pintura como modelo para filosofia, entende-se que Merleau-Ponty entrevê o sentido originário da linguagem pictural, interpretando-a como “materialização” dos olhares na inspeção do mundo, não quando esses olhares já se tornaram um sistema de significações, mas enquanto “lógica alusiva”, isto é, sem modelo exterior.
Merleau-Ponty deseja mostrar que há uma linguagem primeira que é anterior à linguagem sistematizada, linguagem que não tem seu sentido manifesto na correspondência de uma palavra a um conceito, isto é, um signo para uma significação já definida. Podemos dizer, grosso modo, que para Merleau-Ponty a linguagem é espontaneamente criada pelo entrelaçamento dos sentidos, e essa “linguagem sem pensamento” tem, para ele, sua potência de simbolização intimamente relacionada à motricidade e ao olhar. De certo modo, podemos dizer que o olhar é o fundo que sustenta a reflexão merleau-pontyana sobre a origem do sentido, é ele que coloca em movimento a articulação entre interioridade e exterioridade. Para Merleau-Ponty este movimento é reiterado pela pintura de Cézanne, no momento em que seu olhar encontra o mundo, momento em que o pintor toca o real e fá-lo falar na tela, o sentido que a visão lhe sussurra. Merleau-Ponty identifica, pelo que é próprio à pintura, uma ordem nascente, ordem que expõe a percepção, o corpo, o mundo, à novas articulações de sentido. Assim, se se pensa no Cézanne “de” Merleau-Ponty em Sens et Non-Sens, ali onde Merleau-Ponty afirma que a pintura foi para Cézanne seu mundo e sua maneira de existir, entende-se que sua pintura-vida é capaz de responder ao assombro do olho que olha o mundo. Para além da questão relacionada à transposição dos procedimentos da pintura à filosofia, percebe-se a crítica que Merleau-Ponty acorda à “filosofia de seu tempo”, crítica ao abandono do assombro filosófico enquanto atitude existencial, ao abandono de seu caráter interrogativo – atitude que Merleau-Ponty infere como essencial à reflexão filosófica. Assim, trata-se, para ele, de buscar uma linguagem capaz de neutralizar as sedimentações conceituais, uma linguagem que não esteja subsumida à razão. Nesse sentido, pode-se dizer que a pintura lhe aparece como experiência viva, em meio a um pensamento que reivindica à razão, um novo modo de olhar.
Que temas e aspectos da pintura, relacionada à filosofia, o livro coloca para o leitor?
Lembro ao leitor que Merleau-Ponty não fala da pintura em sua ambitude geral. Desse modo, embora faça menções a Paul Klee, Leonardo da Vinci e outros, é, especificamente, a pintura de Paul Cézanne que Merleau-Ponty toma como referencial. Assim sendo, seja por sua originalidade absoluta, por sua explosão de veracidade, tão próxima a desvendar o enigma da natureza, do homem, ou pelo poder de subversão que sua obra impõe à história da arte, é Cézanne o pintor por ele escolhido. Desse modo, pode-se dizer que a pintura de Cézanne aparece à Merleau-Ponty como excelência do modelo requerido à filosofia. Pintura, cujo sentido, tomado de precisão, esclarece a passagem do mundo natural ao mundo da expressão – passagem que Merleau-Ponty vê como imagem da anexação do mundo pelo indivíduo. É a potência expressiva da pintura, o que o motiva sua escolhê-la: “a pintura nos reconduz à visão das próprias coisas (…) uma filosofia da percepção que queira reaprender a ver o mundo restituirá à pintura e às artes em geral seu lugar verdadeiro (…) trata-se, como na percepção – das próprias coisas – de contemplar e perceber o quadro segundo as indicações silenciosas de todas as partes que me são fornecidas pelos traços de pintura depositados na tela, até que, sem discurso e sem raciocínio, componham-se em uma organização rigorosa em que se sente de fato que nada é arbitrário...” [Merleau-Ponty, 1948]
Descobrir o sentido primeiro, sem abandonar a situação do homem no mundo, esse é o desejo da pintura de Cézanne, essa é a filosofia que teria “abrangido tudo”, diz Merleau-Ponty. Percebe-se que Merleau-Ponty trabalha com a ideia de um fundo comum à criação, isto é, com a ideia da existência de uma unidade do “estilo humano” que está presente na obra, e que a torna “reconhecível” a todos os homens. Assim sendo, ao ater-se sobre o modelo cézanneano da visibilidade, Merleau-Ponty percebe que o artista retoma os dados que lhe chegam pela percepção, e os transforma a partir de um sistema interno de equivalências, ou seja, para ele a percepção do artista não produz o visível, ela o torna visível. Com efeito, se recuperarmos a fala de Cézanne, “a paisagem reflete-se, humaniza-se, pensa-se em mim”, nos é possível dizer que sua fala torna-se exemplar à Merleau-Ponty, ela põe às claras o movimento de seu pensamento. E então, o que a princípio parecia-nos um desvio, a pintura como modelo para filosofia, firma-se como possibilidade de permutação.
O livro se divide entre “O Mundo de Merleau-Ponty”, “O Corpo” e a conclusão “Merleau-Ponty encontra Cézanne”. Como estas partes se inter-relacionam?
Em linhas gerais, a proposta é identificar como Merleau-Ponty elabora a passagem da percepção à expressão, e porque ele acorda à pintura um modelo possível para filosofia. O pensamento parte do pressuposto de que ele não reduz a pintura às mudanças no âmbito do pensar, mas a toma a partir das relações que o pintor estabelece com o mundo que vê. Conquanto, pensar a relação estabelecida por Merleau-Ponty entre filosofia e pintura, sem uma familiarização com a obra, tornaria a leitura do trabalho impossível. É nesse sentido que os capítulos foram propostos. O mundo de Merleau-Ponty procura entender o desenvolvimento de seu pensamento a partir de leituras soltas e diversas, ou seja, sem que a linha do tempo ou a especificidade do tema fossem utilizados como guias. Em O Corpo procuro mostrar a importância que Merleau-Ponty afere à presença do corpo no mundo: o corpo merleau-pontyano aparece como articulador da gênese de sentido, ele é corpo que percebe e porque percebe, é capaz de metamorfosear o percebido em expressão. A conclusão, O olhar círculos que se envolvem – Merleau-Ponty encontra Cézanne, busca responder à questão posta no início: em que consiste o privilégio que Merleau-Ponty acorda à pintura a ponto de pretendê-la modelo para filosofia?
Alguns aspectos da filosofia de Merleau-Ponty são baseados nas relações: o ser em relação com o mundo leva à elaboração de uma “filosofia da ‘ligação’”, como pode-se ler no posfácio. Quais são as bases dessa filosofia que propõe relações e ligações e como ela impacta nossa relação com a arte?
O trecho mencionado na questão refere-se ao seguinte excerto do posfácio: “Merleau-Ponty fundamenta a necessidade do retorno às questões maiores da filosofia ao expô-las à problemática da encarnação, momento em que passa a elaborar uma filosofia da “ligação”: ligação do homem com ele mesmo, ligação do homem com o outro, ligação do homem com o mundo”.
Ao se refletir sobre essa reflexão, entende-se que para Merleau-Ponty a filosofia mantém uma relação de dependência com a vida, sua fala, se verdadeiramente expressiva, deve seguir o rastro do mundo, interrogando-o de maneira continuada. É nesse sentido que podemos dizer que Merleau-Ponty ao introduzir o mundo em sua contingência, infere à filosofia a necessidade de renunciar-se como positividade, como criação separada e isolada da vida dos homens. Se a filosofia não pode fugir do mundo, é necessário que ela se realize destruindo-se como filosofia separada, diz Merleau-Ponty em Fenomenologia da Percepção [1945]. Esta referência guiou-me na escrita do posfácio. É nesse sentido que digo ali, que Merleau-Ponty elabora uma filosofia da “ligação”. Trata-se de uma reexposição das questões maiores da filosofia à problemática da encarnação – crítica ao abandono do mundo percebido. Desse modo, no que concerne, especificamente, à filosofia, Merleau-Ponty percebe que ao afastar-se do rigorismo que cambia entre polos, ela, filosofia, estará novamente em presença de sua verdadeira inspiração.
A partir do exposto, não diria que a relação estabelecida por Merleau-Ponty, entre filosofia e pintura, altera nossa relação com a arte, pois como lhes disse, Merleau-Ponty não se propõe falar “de” pintura, mas “conforme” a pintura. Ora, e então como situarmo-nos em relação a isso? O referido abre-se como caminho, ou seja, leva-nos à compreensão do sentido de “conforme” a pintura. Desse modo, consideremos que é possível afirmar que Merleau-Ponty não desejou elaborar uma teoria estética, ou, dito de outro modo, que Merleau-Ponty, em seus escritos, não tomou a arte como unidade estética, isto é, como fundada em um sentir. Conquanto, caber-nos-á perguntar mais uma vez: como compreender o dito, se temos o hábito de tomar a arte, em sua origem, como intrinsicamente relacionada ao sensível? Estamos diante da seguinte situação: ao falar em expressão primordial – operação que constitui os signos em signos – Merleau-Ponty secundariza o plano do sentir, isto é, ele acentua o surgimento do sentido, em detrimento à especificidade do elemento sensível, a partir do qual esse sentido aparece. Assim, no caso da pintura, a obra surge à Merleau-Ponty como o suporte à articulação entre o dentro e o fora, obra que ao dar-se “na” expressão, realiza e revela um sentido novo. A ideia da ideia, reside aí… Grosso modo, Merleau-Ponty não está preocupado com a fruição da obra, mas com o processo de criação. Atém-se, por assim dizer, ao movimento que vai da percepção à expressão.