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A ponte bandeirante

Viaduto do Chá ampliou o horizonte do paulistano, pondo fim a um confinamento espacial de 350 anos

José de Souza Martins | O Estado de S. Paulo | 11.11.2012

Viaduto do Chá (1929)

Os 120 anos do Viaduto do Chá, completados no dia 6, merecem registro e análise pela importância que ele teve na transformação do povoado paulistano na cidade que São Paulo é. Por ele, São Paulo atravessou do passado em direção a um novo presente e ao futuro. Tanto no real quanto no imaginário. Ele foi a Lei Áurea da cidade, libertando-a do confinamento espacial a que esteve condenada por 350 anos. O Viaduto do Chá, inaugurado em 1892, demolido em 1938 e substituído pelo que hoje conhecemos, mudou a economia da cidade, mas principalmente alterou a mentalidade dos paulistanos.

Num painel de bronze do século XIX, no Cemitério da Consolação, no túmulo antigo dos operários da Fábrica de Chapéus de Adolfo Schritzmeyer, há em relevo uma vista panorâmica do vale do Ribeirão Anhangabaú. A fábrica aparece na roça, ladeada de canteiros de verduras espalhados por toda sua extensão, a poucos metros do centro da cidade. Anhangabaú tido como maldito, é bom que se diga: desde antes da fundação da vila de Piratininga, era crença dos índios, e continuou crença dos moradores, que aquele era o lugar de Anhangá, versão indígena do demoníaco, um ente dos limites e confins. No folclore paulistano, ficou a cantiga infantil que celebra a ponte antiga e rústica que precedeu o viaduto imponente, em outro ponto:

“Eu fui passar na ponte, a ponte estremeceu. A água tem veneno, morena, quem bebeu, morreu”.
Análises antigas da água do Anhangabaú revelaram que ela continha arsênico.
É só se afastar poucas centenas de metros do centro que o paulistano descobre as encostas do outeiro transformadas em ladeiras: a Ladeira de São João, a Ladeira Porto Geral, a Ladeira General Carneiro, o Beco do Pinto, que desce para a Rua Frederico Alvarenga, onde ficava o necrotério. Resquícios da encosta que, com o muro de taipa, teve funções de muralha protetiva contra os ataques dos índios, como o ataque maciço de 1562, com seus inúmeros mortos e moradoras e moradores capturados e levados. Várias gerações de paulistanos foram educadas na cultura do confinamento, refugiadas quase ao redor do Pátio do Colégio.
A poderosa cultura do confinamento dos moradores, que atingiu sobretudo as mulheres, atingiu também os homens por meio do disseminado costume endogâmico de casarem-se com as primas, sempre alguém “de dentro” da própria família, numa enorme resistência aos “de fora”. Desdobramento do lugar da casa de família nessa cultura como lugar de refúgio e verdadeiro esconderijo em relação a uma exterioridade tida como espaço do estranho e do inimigo. A antiga vila e, depois, cidade ajustou-se espacialmente aos requisitos e ameaças desses temores de origem e restringiu-se ao espaço do chamado Triângulo, nos confins do estreito terreno entre o Tamanduateí e o Anhangabaú. Não por acaso, os aldeamentos de confinamento dos índios descidos do sertão e reduzidos à condição servil foram localizados no exterior dos limites representados pelo Rio Tiete e pelo Pinheiros, limites de um cenário da guerra contra o gentio. As pessoas passam e os vindouros se esquecem, mas as determinações espaciais continuam ditando suas regras de convivência, de proximidades e distâncias muito depois de passado o tempo de suas razões de ser.
Os paulistanos urbanos atravessaram os séculos confinados no centro. Sobreviveu desse costume, até hoje, a expressão “vou à cidade”, “estive na cidade”, para os moradores se referirem ao verdadeiro centro, que é o antigo. O Viaduto do Chá estendeu esse centro até o outro lado do ribeirão. Abriu e modernizou um território novo para a expansão urbana. De fato, para ir do Largo da Sé até o Largo dos Curros, atual Praça da República, antes era necessário passar pelo Largo de São Francisco, descer a atual Rua Riachuelo em direção ao Vale do Anhangabaú, atravessar o ribeirão pela Ponte do Lorena, ladear o Chafariz do Piques e o obelisco que ainda existe pela Ladeira da Memória, usurpada pelas escadas rolantes do metrô, e entrar pela Rua da Palha ou Sete de Abril. O viaduto encurtou o caminho e até diminuiu cansaços, com o bonde puxado a burro. Isso para quem quisesse pagar os tostões do pedágio. Na entrada do viaduto havia cancela e guarita com cobrador. Passava quem pagava. Quem não quisesse, que fosse pelo brejo ou desse a volta imensa.
Pode-se falar no viaduto como marco de nossa revolução urbana justamente porque foi uma das mais poderosas obras de demolição da mentalidade de confinamento dos paulistanos e dos paulistas de então. Ao alargar a cidade, ao expulsar as grandes moradias do centro, os novos espaços expressavam uma nova divisão do trabalho e uma nova espacialização da cidade. O Viaduto do Chá contribuiu para difundir o que é próprio do urbano e da modernidade: a fragmentação do modo de vida, a moradia num lugar, o trabalho em outro, a religião em outro, a festa em outro, o transitar como nova e decisiva atividade do estar em lugar nenhum para poder estar, em seu devido tempo, nos diversos lugares do novo modo de viver.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de Uma Arqueologia da Memória, da Ateliê Editorial.

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