Com a Palavra

Com a Palavra n.20 – Oráculos e vaticínios nas tragédias de Sófocles

Leia a seguir um trecho do texto “Édipo, Herói Adivinho”, escrito pela professora Beatriz de Paoli, presente no novo lançamento da Ateliê Editorial, Édipo em Colono

Édipo em Colono, assim como Édipo Rei, é a representação trágica do cumprimento de um ou mais oráculos. Em ambas as tragédias, existe um oráculo central, apolíneo, ao redor do qual outros vaticínios e sinais divinos se aglomeram, complementando-o ou a ele se justapondo. Esse oráculo principal, que dá corpo e estrutura às duas tragédias, é, em Édipo Rei, aquele dado a Édipo em Delfos, aonde o jovem príncipe fora consultar o Deus sobre sua origem. A resposta de Apolo foi a de que mataria seu pai e desposaria sua mãe e, quando a tragédia se inicia, tal oráculo já se encontra realizado: a morte de Laio por Édipo se dera há muitos anos, assim como a união entre ele e sua mãe. O que a peça encena, portanto, é o reconhecimento por parte de Édipo de que foi justamente através de suas tentativas de escapar a seu destino que o oráculo apolíneo se cumpriu. É em torno do reconhecimento do cumprimento do oráculo – algo como uma anagnórisis mântica – e de suas consequências que a tragédia se estrutura. Em Édipo em Colono, no entanto, ao nos depararmos com um Édipo cego, exilado e desvalido – um retrato do cumprimento do oráculo e, portanto, do poder de Apolo –, ficamos sabendo que Édipo recebera outro oráculo apolíneo, que versava sobre o fim da vida do filho de Laio e é o cumprimento desse oráculo que vemos representado em Édipo em Colono.

Se aquele oráculo que levou aos acontecimentos que vemos em Édipo Rei transforma Édipo de um poderoso e admirado rei em um pária cego e desvalido, este outro oráculo, como vemos em Édipo em Colono, devolve o poder e a grandeza à figura de Édipo, transformando-o num herói capaz de ser tanto um benfeitor a seus aliados (no caso, a cidade de Atenas, que lhe dá abrigo) como um malfeitor a seus inimigos (no caso, os tebanos, responsáveis pelo seu banimento).

Essa transformação pela qual passa Édipo, além de refletir a transferência de Édipo do domínio do Deus Apolo para o das Deusas Erínies – que, como observa Jaa Torrano, perfazem uma unidade enantiológica, na qual os opostos tanto se excluem quanto se implicam –, marca a relação de Édipo com a palavra oracular. Édipo deixa de ser um receptor passivo e passível de erro de interpretação para se tornar não só um emissor ativo como um intérprete exímio dos sinais divinos. Em outras palavras, Édipo assenhora-se do processo comunicativo com os Deuses, controlando quanto e quando cada um deve saber a respeito dos desígnios divinos que lhe concernem e se tornando ele mesmo uma fonte de saber divino. Diferentemente de em Édipo Rei, em que vemos Édipo ir em direção ao cumprimento do oráculo ao dele fugir, aqui vemos o filho de Laio ir em direção ao cumprimento do oráculo conscientemente e certificando-se de que tudo aconteça tal o qual Deus lhe vaticinou.

O oráculo apolíneo, no entanto, embora seja o elemento central, não é o único presente em Édipo em Colono; na verdade, temos nesta tragédia um conglomerado de sinais divinos ao redor da figura de Édipo que compreende oráculos, vaticínios, sinais divinos, como presságios e raios, e imprecações. Tal conglomerado de sinais divinos é, no entanto, desvelado aos poucos ao longo da tragédia. Oráculos e vaticínios nas tragédias de Sófocles tendem a ser revelados por partes, podendo ser mencionados várias vezes ao longo do drama e apresentando por vezes diferentes formulações, sem que sejam citados verbatim. A estratégia não é diferente em Édipo em Colono. Os oráculos não são reportados verbatim e são revelados aos poucos. Além disso, os oráculos nesta tragédia, diferentemente do que acontece em As Traquínias ou Édipo Rei, são claros, assertivos e não estão sujeitos a erros de interpretação, pois quem os transmite ou os interpreta é Édipo, que, aqui, domina a linguagem oracular e age como um verdadeiro adivinho.

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Beatriz de Paoli possui graduação em Letras pela Universidade de Brasília (2000), mestrado em Teoria Literária também pela Universidade de Brasília (2004) e Doutorado em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (2015). É Professora Adjunta de Língua e Literatura Grega na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi Secretária Geral da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) durante o biênio 2018-2019. Atualmente é editora associada da Archai – Revista de Estudos sobre as Origens do Pensamento Ocidental (Cátedra Unesco Archai-UnB) e do Podcast Archai (Cátedra Unesco Archai-UnB). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas Clássicas, pesquisando principalmente os seguintes temas: adivinhação, sonhos e tragédia grega.

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