Se hoje o Brasil é um dos maiores mercados de cerveja do planeta, tudo começou na cidade gaúcha de São Leopoldo, onde um imigrante bávaro produziu a primeira cerveja artesanal comercial do país. Essa saga é contada pelo jornalista Rogério Furtado e pelo administrador Henri Kistler no livro A História da Cerveja no Brasil – O Legado de Stupakoff e Künning, recém-publicado pela Ateliê Editorial.
A obra é o relato do trabalho de pessoas visionárias que vislumbraram a possibilidade de ajudar a construir uma grande nação. É um livro que extrapola a dimensão puramente histórica e econômica dos fatos narrados e com rigor acadêmico os analisa, focando sob o ponto de vista empresarial, e também serve como fonte de inspiração a todos que mergulham no ideal de empreender e gerar riquezas para o país.
Os assinantes do Com a Palavra leem agora com exclusividade uma entrevista com um dos autores de A História da Cerveja no Brasil, Rogério Furtado:
COM A PALAVRA: Como foi o desenvolvimento da pesquisa e realização do processo de escrita da obra?
ROGÉRIO FURTADO: Exaustivo. Primeiro uma surpresa desagradável. Os arquivos oficiais contendo dados de empresas – balanços, relatórios etc. – desapareceram há muito, em São Paulo. Existem registros em cartórios, mas a burocracia nessas entidades inviabiliza a pesquisa. O Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, está em condições lastimáveis. A salvação foi a Biblioteca Nacional, com o acervo digitalizado de jornais de época. Sem eles o livro não teria existido. Recorremos também à coleção digitalizada de “O Estado de São Paulo”, à Internet, a grande número de livros de História Econômica e trabalhos acadêmicos, entre outros. A pesquisa foi afetada pela pandemia de Covid: o arquivo da Ambev, que contém documentos da Antarctica e da Brahma, em fase de restauração e organização, permaneceu fechado durante alguns anos. Então, escrever foi o menos difícil.
Um dos aspectos da obra é o foco da chegada da imigração alemã no Brasil que, em 2024, celebra 200 anos. Com isso, a cultura e evolução do preparo da cerveja se transformaram. Poderia comentar sobre esses aspectos que foram importantes no país e como o livro aborda isso?
RF: A chegada dos primeiros alemães ocorreu um pouco antes, em 1819. Mas a colônia que realmente deu certo foi a gaúcha. Por isso, a Cidade de São Leopoldo considera o ano de 1824 o marco inicial da colonização alemã. Foi nesse município que um imigrante bávaro produziu cerveja artesanal com fins comerciais pela primeira vez no Brasil. Não demorou para que a produção cervejeira se espalhasse e alcançasse outras regiões. No Rio de Janeiro, capital do império, uma fábrica de cerveja surgiu no princípio da década de 1830. No entanto, é bom ter em mente que a cerveja havia sido produzida em Recife, durante a ocupação holandesa, e que entrou clandestinamente no país, em pequenas quantidades, durante bom tempo. A importação de cervejas europeias foi legalizada pelo governo português a partir de 1808,com a “abertura dos portos”. Por décadas, a bebida produzida aqui apresentava qualidade sofrível, para dizer o mínimo. O processo era realizado à temperatura ambiente e as cervejas se enquadravam na categoria de “alta fermentação”. O sistema de “baixa fermentação” exige domínio da tecnologia do frio, pois requer temperaturas ao redor de 0º C. Por meio dele se produzem as cervejas da categoria lager, hoje dominantes no mercado mundial. O início da fabricação de bebidas lager se iniciou pouco antes da virada do século XIX para o século XX.
Um dos destaques do livro é o desenvolvimento da propaganda que as empresas cervejeiras realizaram para atrair o consumidor, transformando o papel do marketing no país, assim como tornando a cerveja a bebida alcóolica preferida da população brasileira. Conte-nos um pouco como vocês trabalharam para traçar toda essa linha do tempo comercial, inclusive as escolhas dos rótulos, cartazes e calendários que figuram o livro.
RF: O consumo de cerveja estava bem difundido pelo Brasil por volta de 1870, principalmente no Rio de Janeiro – cidade de clima muito quente, a mais importante do país. O consumo foi alavancado pela oferta de cerveja gelada, com gelo então importado dos EUA. Com a produção das lager e de gelo aqui, as empresas maiores utilizaram todos os artifícios a seu alcance para estimular o consumo. O mais importante, é claro, foi a propaganda. As cervejarias produziram rótulos e cartazes atraentes na maioria dos casos. As reproduções que saíram no livro levaram em conta a importância histórica – é o caso do primeiro rótulo da Brahma – e também a estética, pois algumas dessas peças são realmente bonitas.
O legado de Stupakoff e Künning transformou o setor empresarial no país e o mundo dos negócios. Para um gestor e do setor cervejeiro, poderia apontar as importâncias da leitura da obra?
RF: As indústrias de bebidas, as de cerveja em particular, contribuíram enormemente para os cofres públicos nas primeiras décadas da República, estando na ponta de grandes cadeias de produção, tal como hoje, e empregando muita gente, de forma direta e indireta. Daí sua importância para a História econômica e empresarial.
Nos últimos anos, aconteceu uma grande transformação e aparecimento de cervejas artesanais no país. Podemos dizer que é um retorno de como foi desenvolvida a bebida no começo da chegada da imigração alemã, na arte de fabricação da cerveja? O livro seria essencial para os mestres cervejeiros?
RF: O surgimento de inúmeras cervejarias artesanais é fenômeno recente, por isso não foi abordado no livro. Mas não se trata de retorno à etapa do início da imigração alemã. Os avanços científicos e tecnológicos foram imensos desde aquela época. Hoje, mesmo as pequenas indústrias contam com recursos que nem sequer poderiam ser sonhados em princípios do século XIX.
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