Com a Palavra

Com a Palavra n.31: bem-vindo ao mundo de Aldo Manuzio

A coleção Inventores de Livros pretende resgatar a vida e obra dos pioneiros da tipografia e da impressão, uma parceria Ateliê Editorial e Editora Mnema, sob a coordenação de Plinio Martins Filho e com edição, notas e projeto gráfico de Gustavo Piqueira.

O primeiro volume O Inventor de Livros: Aldo Manuzio, Veneza e seu Tempo traz a vida e obra do tipógrafo italiano que, além de estabelecer inúmeros procedimentos tipográficos que servem de modelo até nossos dias, desenvolvendo como poucos a arte da impressão de livros, foi também o primeiro a exercer o papel de editor como conhecemos hoje.

Dono de prodigiosa erudição e detentor de notável capacidade de criar e manter relacionamentos com as mais proeminentes figuras da cultura de seu tempo, Aldo tem lugar de destaque no panteão dos restauradores da cultura clássica pelo seu trabalho de edição de obras completas dos grandes autores gregos e latinos.

A imprensa aldina foi responsável pela segunda fase do Renascimento: aquela que viu a popularização do resgate dos valores estéticos, morais e conceituais da Antiguidade greco-romana.

Neste número, os assinantes puderam ler com exclusividade a Nota Introdutória de Gustavo Piqueira, que faz parte da obra.

Nota Introdutória por Gustavo Piqueira

Gutenberg inventou a impressão com tipos móveis, mas quem inventou o livro impresso foi Aldo Manuzio.

A frase, lapidar, não é de minha autoria, mas resume bem o posto que o italiano ocupa no cânone editorial. Alessandro Marzo Magno, autor deste livro, faz coro: “Bem-vindo ao mundo de Aldo, o primeiro editor da história. Tudo o que você leu nas linhas pelas quais acaba de percorrer, deve-o a ele. Anteriormente, quem imprimia livros era um simples tipógrafo: escolhia as obras a publicar com base em seu potencial de venda, mas sem um preci­so projeto editorial. A atenção à qualidade era mínima. (…) Com Manuzio, tudo muda.”

Os méritos de Aldo Manuzio são de fato inquestionáveis: foi com as edi­ções aldinas que os parâmetros do livro impresso se fixaram e, em sua me­dula estrutural, até hoje persistem. No entanto, processos complexos como o da consolidação da forma do livro nunca são obra de um único indivíduo, nem brotam de inesperados momentos de ruptura. Processos complexos são, o nome já diz, complexos. Os episódios e personagens chave aos quais nos habituamos a condensá-los se constituem, na verdade, nos pontos de infle­xão que sinalizam o momento em que algo já em curso emergiu à camada do visível. Não se trata do começo, nem do fim. Se o livro impresso surge se esforçando ao máximo para emular visualmente os manuscritos medievais e só depois de algum tempo consolida sua gramática formal própria, isso não se deu pela sorte de ter cruzado com Aldo Manuzio pelo caminho, mas sim quase como uma inevitável decorrência natural que, hora ou outra, irrom­peria. Basta observarmos a similaridade na evolução de outros artefatos; as primeiras televisões que têm aparência de aparelhos radiofônicos ou os primeiros   computadores que misturam a televisão com a máquina de escrever, por exemplo. Também foi só depois de algum tempo, de alguns avanços tec­nológicos somados a adequações comerciais, que eles desembocaram na­quilo que passaríamos a entender como seus formatos-tipo.

Desse modo, ainda que este volume às vezes carregue um pouco nas tin­tas épicas, Aldo Manuzio não foi um herói. Felizmente, porém, o texto a se­guir vai muito além do enaltecimento de sua figura central e oferece ao leitor um riquíssimo e erudito panorama do contexto ao seu redor. Não à toa, de seu subtítulo consta “Aldo Manuzio”, mas também “Veneza e seu tempo”. Pois sem Veneza, sem estar naquela cidade naquele momento específico, Aldo Manuzio não teria “inventado o livro impresso” — afinal, ele já vinha sen­do inventado há algum tempo, motivado por fatores dos mais diversos, da elevada busca pelo resgate da cultura clássica a objetivos pecuniários bem rasteiros. Aldo não foi exceção, apesar do personagem que entrou para a his­tória ser essencialmente um idealista cujo motto era, conforme citado na pá­gina 124, “será publicado tudo o que merece ser lido”. Marzo ainda vai além, e garante que “seria um exagero dizer que ele (Manuzio) começa a imprimir por dinheiro”. Mas a verdade é que nem Marzo, nem eu, nem ninguém pode corroborar tal afirmação.

A leitura deste livro, portanto, ganha muito se o leitor deixar de lado uma certa romantização monodimensional do mito individual para focar na enor­me riqueza de detalhes com a qual Marzo pinta o mundo em torno de Manu­zio, mundo que foi o berço do livro impresso tal qual hoje o conhecemos. E não estranhe se, ao examinar algumas das páginas impressas por Aldo aqui reproduzidas, um bocejo entediado ou outro surja de repente, reclamando que as imagens não mostram nada além de livros “comuns”. É isso mesmo. Esta é a história do nascimento do “livro comum”. Uma das mais belas histó­rias que já escrevemos.

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