Com a Palavra

Com a Palavra n.32: o futebol segundo Décio Pignatari

Logo na primeira frase do prefácio do livro Terceiro Tempo, de Décio Pignatari, o jornalista esportivo Antero Grecco escreveu: “A inquietação criativa de Décio Pignatari iluminou a cultura nacional em várias frentes, como tradutor, poeta, ensaísta, professor, teatrólogo, teórico da comunicação. Soube, como poucos, combinar erudição com simplicidade, profundidade com graça, seriedade com leveza”.

E é mais ou menos assim quando imaginamos o futebol segundo Décio: uma arquibancada misturada de torcidas e palavras. Gritam, incentivam e animam. O futebol tem em Décio o seu camisa 10, a erudição de um Pelé e uma graça de Garrincha. A seriedade das pernas de Rivelino e a leveza de Ademir da Guia.

Nas crônicas deste livro, Décio exalta os eternos jogadores que ainda não haviam pendurado as chuteiras e deixa para a memória certas partidas que ficariam no banco de reserva da história do futebol: “Que de outros sortilégios de igual porte e sorte é capaz, prova-o o seu poder de transformar, pela simples ausência, um joguinho pouco mais do que subdesenvolvido, como este último São Paulo vs. Portuguesa, num clássico decisivo. O trivial vira raro acepipe, o paladar já não distingue entre caviar e geleia, jogadores apenas regulares passam a parecer ótimos, avilta-se a tábua de valores”.

Terceiro Tempo é isso, após o apito final nada melhor que uma leitura nesta obra magistral de Décio Pignatari. Nela estão uma roda de conversa esportiva, um toque de voleio, um drible da vaca, uma canetinha, um cruzamento para a cabeça, o gol… e vai pra galera!

Neste número, os assinantes do Com a Palavra leram com exclusividade a crônica Sem piedade, Mané, que faz parte da obra.

Sem Piedade, Mané por Décio Pignatari

O filho varão não veio, mataram o seu mainá: o joelho não tomou jeito, e o seu futebol não voltou. Mas o amor que cantava – a grande Elza Soares! – que desejou e teve, resistiu ao temporal.

Quando da primeira grande crise, o Santos quis comprar o seu passe. Recusou a oferta o orgulho bobo dos dirigentes de General Severiano: só trocando por Pelé! Dizem que os próceres do futebol são bons negociantes: vai-se ver, são uns calhordas do negócio: move-os o orgulho irracional. Quando xingados, dão-se ao luxo de deixar apodrecer trezentos quartos de boi, em lugar de vendê-los a preço de gente. Tal como preferem deixar Garrincha apodrecer de maduro.

Como está Garrincha, como está o seu futebol, como estará? Um enigma. A piedade é a mais feroz assassina do amor. Se nos tempos da fúria amorosa da plateia, Garrincha valia quinhentos milhões, em tempos de piedade 150 milhões é muito: quem vai pagar, por uma incógnita, os trezentos milhões pretendidos pelo sr. Nei Cidade, digo, o Sr. Neciedade?

Generoso Nilton Santos! “Liberte o Garrincha, dê-lhe o passe de presente!” Nilton sabe que isto é inviável. E o vexame de Garrincha, pondo-se em leilão, com o passe na mão, virando mendigo de porta de igreja, ou pedinte de fila de ônibus e cinema? –:

“Veja, doutor, o estado do meu joelho: não melhora e não desincha. Meu nome é Mané Garrincha: já fiz mandinga, operação e injeção; tenho mulher e oito filhas que já não posso sustentar – e não sou cigarra para viver só de cantar. Eu preciso me curar para voltar a trabalhar: eu não sou mais tão moço, mas se me tratar e me curar, volto a ser bom como eu era no único ofício que tive e tenho – e que é trabalhar com a bola. Já dei copas ao Brasil, já recebi abraço de rei, já fui alegria do povo e até apareci em fita – o doutor não acredita? Não faz mal, eu compreendo. Compre o passe, está a bom preço – está barato, não está? – e quem sabe vou de novo receber abraço de rei. A vergonha não passa nunca – mas este momento passará.”

Recuse a piedade assassina, seu Mané! O que você desaprendeu pode ser aprendido de novo. Lute até o fim como o Corisco diabólico do filme genial de Gauber Rocha! “Mais fortes são os poderes do povo!” Onde a Comissão Técnica da Seleção vai arranjar quatro pontas-direitas iguais a vocês? Três? Dois Um? Nenhum – se você se recuperar!

Tal como vejo as coisas, a maior humanidade, nesse momento, é encarar a questão a frio: convencer os dirigentes do Botafogo de que eles se mostrando generosos simplesmente estão fazendo um bom negócio.

O Botafogo está tentando renovar o seu plantel, no que se mostra procedente – e os bons resultados colhidos até agora, se não são brilhantes, bastam para demonstrar o acerto da sua política. Solicitando trezentos milhões à vista, talvez os manda-chuvas de General Severiano tenham feito um lance para italiano ou mexicano ver. Por mais que estejam, porém, fingindo que não viram, certamente assustados pelas informações e rumores sobre o atual futebol de Garrincha.

Invocando, porém, os espíritos da sensatez, os dirigentes botafoguenses poderão fazer nova oferta, mais realista – e o negócio se fará em três tempos, pois Santos e Corinthians se interessam pelo famosíssimo craque: o Santos, para maior elasticidade de dólares nas barganhas de jogos no exterior (ficará com a linha campeã mundial, praticamente); e o Corinthians porque está desesperadamente necessitando melhorar o seu plantel, ao mesmo tempo em que o sr. Wadih Helou precisa de um golpe teatral desse porte para fortificar a situação, às vésperas das eleições da nova diretoria.

Piedade para Garrincha se chama apenas: bom negócio.

Um bom negócio, Garrincha, um bom negócio para o Botafogo e para você, é tudo o que você pode e deve exigir!

Folha de S. Paulo, 23.3.1965.

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