Com a Palavra

Com a Palavra nº 25: a poesia de Chico Buarque

Em comemoração aos 80 anos de Chico Buarque, a professora Adelia Bezerra de Meneses, ganhadora do Prêmio Jabuti de 1982 com o aclamado livro Desenho Mágico, análise das canções de Chico contra a ditadura da época, nos traz mais um livro abrangente: Chico Buarque ou a Poesia Resistente.

No livro, Adelia Bezerra de Meneses analisa, de forma poética, as recentíssimas canções de Chico Buarque, como Que Tal um Samba?As CaravanasMassarandupióTua Cantiga, bem como outras, paradigmáticas, de CDs anteriores: Renata MariaTempo e ArtistaSinhá, e a trilogia que integra o livro Terra de Sebastião Salgado.

As Caravanas: Racismo e ‘Novo Racismo’

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Efetivamente, cresce o que os historiadores chamam de “o novo racismo”. Xenofobia vem do grego xenos = estrangeiro, e fobia = medo. E como diz a letra de As Caravanas, em enxuta síntese, “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. De fato, o medo engendra a raiva, que gera a covardia.

Dito isso, vamos retornar ao Brasil. Há que se estudar a escravidão para se entender este país e, quem sabe, mudar alguma coisa: ela plasmou o povo que somos. O Brasil é o maior território escravista do Ocidente. Sozinho, recebeu 40% dos milhões de africanos embarcados à força para o continente americano – o que significa que para cá vieram quase cinco milhões de africanos. O auge desse desenraizamento humano, segundo Laurentino Gomes, ocorreu do início do século XVIII até meados do XIX. Mas o que é fundamental é que a escravidão não é um fato do passado, ela vige no presente.

Chico Buarque diz isso tudo em As Caravanas, não num discurso conceitual, mas – sem falar na música, que, como eu disse, é produtora de significado –  utilizando uma linguagem imagética e recursos que nos atingem também sensorialmente. Aliás, Hegel diz que “Poesia é o luzir sensível da ideia”.

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Por fim, quero enfocar a estrutura de As Caravanas. Eu tinha dito que a alusão ao romance O Estrangeiro, de Camus, é um ponto de inflexão na canção. A primeira parte do texto (até o vigésimo verso) diz respeito a uma realidade tensionada, conflagrada, que revela um conflito do presente. Mas a partir da quinta estrofe, que se situa no meio da canção – e que, como eu disse, alude ao assassinato de um muçulmano –, há uma clivagem no corpo do poema, o estilo muda, o tom se altera.

Com efeito, a razão começa a bascular. Não se enxerga aquilo que está diante dos olhos, que, junto com a razão, estão embaçados, como diz o verso 24, no centro exato do poema. Nas últimas estrofes, aparecem os termos “zoeira”, “doido”, “insana”; a expressão “Ou doido sou eu que escuto vozes” (versos 30-43). Esquizofrenia? Ou se poderia pensar que essas vozes escutadas seriam as Vozes d’África, do poema de Castro Alves?

Na sequência, o que vai dominar é a denegação: “Não há gente tão insana / Nem caravana / Nem caravana / Nem caravana do Arará”. Ao final, num crescendo, insiste-se em negar. É uma denegação por parte do brasileiro comum, mas é também uma denegação institucional, que beira a insanidade. Verifica-se uma ruptura do tecido social desse povo que, tanto individual, quanto coletiva e institucionalmente, não se dá conta de sua origem e não presta contas à sua história.

Eu tinha falado mais acima em clivagem no texto da canção As Caravanas. No âmbito da mineralogia, clivagem é a propriedade que têm certos minerais, certos cristais, de se fragmentarem segundo sua estrutura, segundo um determinado plano regido pela sua estrutura. Pois bem, uma clivagem está presente na sociedade brasileira, estruturada nessa relação senhor-escravo.

AS CARAVANAS

(Chico Buarque)

É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga

Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há

Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

Ah, tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana
Nem caravana
Nem caravana do Arará

(música do álbum As Caravanas, lançado em 2017)

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