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Desconfie da narrativa de Bentinho em ‘Dom Casmurro’ – A obra de Helen Caldwell explica

“Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia mais. Visto de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele”, escreveu o crítico literário alemão Walter Benjamin no seu famoso ensaio ‘O narrador’. Além de diversas interpretações do ensaio, podemos trazer para a leitura uma certa “desconfiança” no narrador em primeira pessoa. Qual o motivo? É simples, quando se narra em primeira pessoa temos apenas uma perspectiva do enredo. O narrador-personagem aborda exclusivamente, no seu ponto de vista, situação, conflito, ambientação, características de outros personagens e, até mesmo, do real cenário da história. Ou seja, o narrador pode estar mentindo para os leitores.

Este contexto se aplica na monumental obra Dom Casmurro, do célebre Machado de Assis. Narrada em primeira pessoa pelo protagonista Bento Santiago, mais conhecido por Bentinho, somos apresentados pela sua perspectiva de uma parte da história de sua vida em torno de seu grande amor Capitolina, eternamente conhecida por Capitu, e o “suposto” caso extraconjugal dela com Ezequiel, melhor amigo de Bentinho. A desconfiança da traição se apoderou em Bentinho por insinuar de que seu filho junto à Capitu tem a aparência de Ezequiel, transformando sua obsessão em tentar descobrir se a personagem traiu ou não ele. Esta questão é o mote principal do renomado texto, assim como levou, por mais de cem anos, estudiosos, pesquisadores e analistas dos textos machadianos e, claro, os leitores a tentar respondê-la.

Porém, a resposta para esta pergunta jamais será revelada, pelo menos por outros pontos de vista, já que somos levados à história de Dom Casmurro pela ótica narrativa de Bentinho. E isto é o que faz com que a obra de Machado de Assis seja atemporal.

Este pensamento inicial também surge como tema para o livro O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, da pesquisadora e professora Helen Caldwell (1904-1987), publicado pela Ateliê Editorial. Nele, Caldwell realiza uma análise comparativa da trama das obras Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Otelo, de William Shakespeare. Publicado em 1960, este clássico dos estudos machadianos só foi traduzido para o português mais de quarenta anos depois, chegando agora ao leitor interessado num dos maiores artistas que o Brasil já teve.

No prefácio, da primeira edição, a pesquisadora explicou o que a motivou a escrever o ensaio: “o conjunto da obra de Machado de Assis apresenta a emergência de um intelecto estável e consistente, com ideias e formas que aparecem, reaparecem e se desenvolvem, mergulhei em suas obras para elucidar um único romance. Visto que o próprio Machado de Assis se referiu diversas vezes a Shakespeare com respeito a suas ideias recorrentes, tentei remontar tais referências (pertinentes) a sua fonte. Mas o núcleo de meu estudo consiste em responder duas questões suscitadas diretamente do próprio Dom Casmurro, uma subsidiária à outra. A questão principal é: ‘A heroína é culpada de adultério?’; a subsidiária, ‘por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para a decisão do leitor?’”.

O livro de Caldwell é um ótimo estímulo como apêndice para atuais estudiosos das obras de Machado de Assis, principalmente de Dom Casmurro, além de leitores que desejam se aprofundar e elaborar uma maior crítica do texto machadiano. Mais do que transcender a tal desconfiança histórica de que Capitu traiu ou não Bentinho, o texto demonstra a pena de ouro de Machado de Assis na construção literária, transmitindo uma narrativa potente, uma brilhante aula de escrita criativa. E o livro de Helen Caldwell faz com que subíssemos com mais cuidado no espiral ficcional de Dom Casmurro, como a pesquisadora situou: “A evidência que reuni para responder estas duas questões [apontadas na citação anterior deste texto] irão, assim espero, deitar luzes na mensagem deste romance de Machado de Assis e na de outros, além de fornecer alguma (pequena) compreensão acerca de seu método narrativo”.

Helen Caldwell (1904-1987) foi pesquisadora e professora da Universidade da Califórnia, ensinando em diversas áreas, como literatura grega e latina. Especializou-se na obra do brasileiro Machado de Assis, traduzindo para o inglês alguns de seus livros como HelenaDom CasmurroEsaú e JacóMemorial de Aires, além de um volume de contos machadianos.

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) começou como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, logo se tornou colaborador do Correio MercantilDiário do Rio de Janeiro, Semana Ilustrada e Jornal das Famílias (em 1858). Mais tarde também escreveu para a Gazeta de NotíciasRevista Brasileira e O Globo. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, na qual ocupou a cadeira n. 23. Sua literatura se divide em duas fases, sendo a primeira romântica e a segunda realista, na qual publicou obras mundialmente conhecidas e que o tornaram a maior figura da literatura brasileira. A Ateliê Editorial publicou suas obras: Várias HistóriasQuincas Borba, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom CasmurroMemorial de Aires e Esaú e Jacó.

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