O Cancioneiro, de Petrarca, é um livro do século XIV. Apesar de ser considerado o principal modelo de poesia lírica amorosa no Ocidente, a distância que nos separa deste clássico – que a Ateliê lançou com a tradução de José Clemente Pozenato e ilustrações de Enio Squeff em 2015 – muita vezes dificulta sua leitura.
Foi pensando nisso que nesta semana publicamos a última parte do texto Sugestões para um leitor de hoje que queira ler o “Cancioneiro” de Petrarca, escrito pelo poeta, crítico de arte e ensaísta brasileiro Armindo Trevisan.
Sexta Sugestão
Talvez o leitor estranhe que Petrarca tanto enalteça seu ídolo, uma Laura
que possivelmente não poderia ser estrela de um filme. Qualquer tentativa de desmitizá-la a banalizaria. Laura jamais poderá descer das alturas rarefeitas da imaginação. Será sempre uma mulher vislumbrada. Mas o que o poeta escreveu sobre ela, a propósito dela, e sobretudo, o que conseguiu extrair do poço sem fundo de suas próprias experiências e fantasias, não foram, nem possivelmente nunca o serão, exploradas como ele as explorou. Inclusive porque a linguagem de Petrarca é – ela própria, em si – uma fabulosa criação pessoal:
Se amor não é, qual é meu sentimento?
Mas se ele é amor, por Deus, que coisa é e qual?
Se boa, de onde lhe vem a ação mortal?
Se má, por que é tão doce seu tormento? (p. 239).
A atualidade de Petrarca consiste, afinal, no seguinte paradoxo: ele anacroniza os poetas contemporâneos! Ao lermos seu Cancioneiro, percebemos o quanto os poetas modernos e contemporâneos beberam em suas fontes, o quanto lhe devem em pedágio.
Em vista disso, leitor, não se preocupe com o tom aparentemente monocórdico de seus versos. A monocordia não é dele, é dos poetas que vieram após ele. É dos poetas que o assimilaram.
A leitura do Cancioneiro possui o mérito de revelar o quanto na literatura moderna e contemporânea já estava in nuce em Petrarca. Porque o que Petrarca descobriu não foi um tipo de poesia, mas a própria poesia moderna, como ela se expandiu, como – a partir de Dante – tomou nova direção: a de Petrarca.
Petrarca descobriu a inquietude contemporânea, o desassossego, e com ele os inumeráveis caminhos que daí partem, e vão desaguar, inclusive… em Fernando Pessoa!
Tudo o que se relaciona com o eu do poeta, com o homem que subjaz ao criador, está em Petrarca.
O autor do Cancioneiro só não descobriu um elemento essencial que define nosso mundo: o eu ampliado de Baudelaire ou de Nietzsche, bem como o “eu” inflado e não totalmente perscrutado das massas, das multidões. Porque a realidade é que Petrarca foi um Robinson Crusoé de si. Faltou-lhe imaginar o nós, verdadeiro e ilusório que resultou da explosão atômica do eu, e nos levou à noosfera alucinada e alucinante de nossa realidade contemporânea.
Eis porque a poesia moderna é necessária, possui seu universo peculiar, e sob certos aspectos se afastou de Petrarca, e nada deve a ele.
Ela veio completar Petrarca, mas não aprisioná-lo em fórmulas.
A poesia, portanto, permanece viva e criativa, e inclusive continua a inspirar-se no mundo do grande inspirador do autor do Cancioneiro, Agostinho de Hipona que escreveu:
–Grande abismo é o homem, Senhor! Contais os fios de seus cabelos (…) porém seus cabelos são muito mais fáceis de contar que os afetos e movimentos de seu coração.[1]
[1] Cit. in: Peter Brown. Santo Agostinho, uma Biografia. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Editora Record, 2005. p . 209.