Em comemoração aos 80 anos de Chico Buarque, a Ateliê Editorial publica a obra Chico Buarque – A Transgressão em Três Canções, de Eduardo Calbucci. O livro – em pré-venda promocional no site da editora – destaca a inventividade do cantor e compositor, além da sua importância na cultura nacional em estudo que investiga as letras das canções no segmento da semiótica. A capa foi desenvolvida e produzida pela Casa Rex.
O livro de Cabucci, resultado de uma dissertação de pós-graduação defendida em 2003, é apresentada uma análise semiótica, do viés francês, de três músicas de Chico Buarque: Mar e Lua e Não Sonho Mais, ambas do álbum Vida (1980), e Uma Canção Desnaturada, de Ópera do Malandro (1979). Destacam-se, entre outros, os capítulos Não Sonho Mais: A Interpretação dos Sonhos – um Mistério Tensivo, Uma Canção Desnaturada: O Amor Materno – um Problema de Tensividade e Mar e Lua: O Amor Proibido – o Espaço da Transgressão.
Eduardo Calbucci é formado em Jornalismo pela USP, onde obteve também os títulos de mestre e doutor no Programa de Semiótica e Linguística Geral. É professor, palestrante e autor de materiais didáticos para Educação Básica há quase 30 anos. Já desenvolveu projetos na área de educação para o Museu da Língua Portuguesa e para a TV Cultura. É autor de A Enunciação em Machado de Assis, publicado em 2010 pela Nankin e pela Edusp. Pela Ateliê Editorial publicou também Saramago – Um Roteiro para os Romances.
Leia a seguir uma entrevista com o autor:
PERGUNTA – Poderia explicar a ideia e o desenvolvimento do livro?
EDUARDO CALBUCCI – Esse livro surgiu há mais de 20 anos, quando iniciei meu mestrado no Departamento de Linguística da FFLCH-USP, sob orientação do Luiz Tatit. A partir de um conceito que foi pouco utilizado desde que foi proposto, na década de 1970, resolvi ampliar seu alcance, (re)definindo o que era a transgressão. Há muitos romances, contos, filmes, peças de teatro, canções em que os desejos individuais entram em conflito com as imposições sociais. Resolvi então analisar três canções de Chico Buarque em que esse desejo transgressor estivesse presente.
P – Conte um pouco sobre a escolha das três letras de Chico Buarque para análise?
EC – Havia muitas possibilidades de escolha. São muitas as canções de Chico em que a transgressão está presente de alguma forma: “Geni e o zepelim”, “Vai passar” ou “Acorda amor” são exemplos conhecidos. Mas eu quis fugir um pouco do óbvio. Assim, escolhi para a análise “Mar e lua”, uma delicada história de um amor proibido entre duas mulheres, “Uma canção desnaturada”, uma canção sobre a negligência e a crueldade materna, e “Não sonho mais”, um violento hino sobre a vingança.
P – E sobre análise pelo viés da semiótica. Poderia comentar sobre esse exercício de pesquisa com as letras do Chico Buarque?
EC – A Semiótica de linha francesa criou um modelo de análise, organizado em níveis (dos mais abstratos aos mais concretos), para que fosse possível explicar como se produz o sentido e como os textos dizem o que dizem. Eu usei esse modelo para analisar as letras das canções e, para as melodias, apliquei o modelo da Semiótica da canção, proposto por Tatit. Desse modo, eu consegui fugir das leituras intuitivas dos textos, para mostrar que existem procedimentos de interpretação com sólida base científica.
P – Como foi a análise da transgressão nas canções escolhidas para a obra?
EC – Das três canções, apenas em uma delas, a transgressão se realiza. Nela, os desejos individuais foram mais fortes do que as interdições sociais. Nas outras duas, a transgressão permaneceu virtualizada, pois os atores não estavam de posse de todos os pré-requisitos para vencer as proibições. Eu procuro analisar como isso se constrói em cada texto, abordando tanto a letra quanto os elementos melódicos das canções.
P – Eduardo, para finalizar, diga-nos a estrofe mais bela de Chico Buarque?
EC – Em “Mar e lua”, há uma estrofe de que gosto muito: “Amavam o amor proibido / Pois hoje é sabido / Todo mundo conta / Que uma andava tonta / Grávida de lua / E outra andava nua / Ávida de mar”.
TRECHOS DO LIVRO:
A transgressão, como mostramos no item anterior, pode ser analisada de acordo com a modalidade do /fazer/. Mas é inegável que, para compreender toda a amplitude do papel do transgressor, é necessário também considerar a modalidade do /ser/. O transgressor, definido como um sujeito que quer estar em conjunção com um valor não aceito socialmente, está sobretudo motivado por um /querer ser/. Essa vontade, associada à impossibilidade do /dever não ser/, gera inevitavelmente um conflito de natureza psicológica, pois o transgressor se encontra sob o efeito simultâneo de modalidades contraditórias. É claro que é o enunciador de cada texto que determina até que ponto esses conflitos modais estarão presentes na superfície textual, mas, independentemente disso, eles existem e precisam ser estudados.
Mar e Lua possui seis estrofes, cada uma com sete versos, produzindo um esquema rítmico regular. Cada estância possui um verso inicial de sete (1ª e 6ª estrofes) ou oito sílabas poéticas (2ª, 3ª, 4ª e 5ª estrofes), sendo que o restante das estrofes contém versos pentassílabos. Na sexta estrofe, há uma alteração rítmica e os seis últimos versos são compostos por quatro sílabas. Considerando que as estrofes de sete versos não são usadas com muita frequência na poesia de Língua Portuguesa e que a letra da canção parece possuir um ritmo relativamente tradicional, é possível perceber que, na realidade, o primeiro verso de cada estrofe funciona como uma espécie de “refrão” que introduz seis sextilhas ao longo do texto. Com efeito, o fato de esses primeiros versos terem sete ou oito sílabas faz com que eles ganhem um destaque rítmico.
A transgressão virtualizada em Uma Canção Desnaturada se estrutura a partir da incompatibilidade entre o /querer fazer/ e o /dever não fazer/ e, posteriormente, a partir da impossibilidade representada pelo /não poder fazer/. Essas sobremodalizações, que estabeleceram os valores do nível narrativo, vão originar os temas do nível discursivo. O tema da letra da canção pode, mais uma vez, ser visto como a própria transgressão e, nesse caso, mais especificamente, como o desejo de vingança. No começo da canção, os quatro primeiros versos já pressupõem que o narratário mudou de comportamento, o que faz com que, nos versos seguintes, o narrador deseje reviver o passado para se vingar.